quinta-feira, 18 de julho de 2013

Somos todos favela

Cheguei ontem ao Leblon depois das 18:00. O ponto de encontro para a manifestação marcada com dias de antecedências pelas redes sociais era a esquina da Delfim Moreira (a rua da praia, para quem é de fora) e a Aristides Espínola (a rua onde mora o Sérgio Cabral). A Aristides estava bloqueada na esquina da Delfim Moreira e na General San Martin (a primeira paralela à praia). A Delfim Moreira estava bloqueada inicialmente pela CET-Rio no sentido Leblon da Rainha Guilhermina até a Niemeyer. Quando cheguei devia ter umas 400 pessoas ali, mas ao longo das horas chegou a ter provavelmente mil. A pista sentido Ipanema também acabou fechada, mas pelos manifestantes.

O plano inicial era fazer barulho ali na praia até o choque começar a dispersar a multidão. Levaram cartazes, instrumentos musicais, bandeiras, megafones. Havia computadores projetando manifestações em vídeo e PDF na parede dos prédios com 2 datashow. Estava tudo bem organizado. Eu via a movimentação da PM em volta, posicionando gente nas ruas vizinhas, carros passando pela Av. Niemeyer em direção ao Vidigal (aí eu soube que tinha uma turma na Rocinha que insistentemente fechava o túnel Zuzu Angel, e a PM tinha que intervir a todo momento para liberar a via). Alguns P2 foram identificados e expulsos da manifestação (eu achei que tinha identificado um, mas era só um segurança da Globo, que tinha uma equipe de reportagem descaracterizada ali no meio, misturadas a equipes de rádios, sites e canais da internet). Um grupo grande de manifestantes dava a volta no quarteirão para se posicionar na outra ponta do bloqueio, na San Martin, e dividir a atenção da PM.

Ao longo do tempo, uma espécie de inteligência coletiva amadureceu a ideia de deslocar a manifestação toda para a San Martin, mantendo apenas um contingente suficiente para manter a Delfim Moreira fechada. Com as duas vias fechadas, o congestionamento chegou até a Ponte Rio-Niterói (de onde vinham alguns camaradas, e que, por conta disso, demoraram umas 4 horas para chegar). Eu mesmo vinha para a pista toda vez que o guardinha da prefeitura tentava liberar o tráfego, e os poucos que permaneciam na Delfim conseguiam fazer os motoristas voltarem para tentar outro caminho. O objetivo dessa divisão era concentrar a pressão sobre o choque na San Martin, porque, quando eles abrissem fogo para dispersar a multidão, a guerra iria se espalhar para o meio do Leblon, e não se dissipar pela praia - gás lacrimogênio para os nobres cidadãos de bem em seus apartamentos no metro quadrado mais caro do mundo, uma ideia muito tentadora.

Por volta de 22:00, os black blocs (um pessoal bem organizado que vai para a linha de frente, pronto para bater e apanhar) saíram da praia e se dirigiram para a San Martin. Pouco depois o grupo da Delfim Moreira se dividiu, seguindo pelas duas ruas paralelas à Aristides Espínola. A tensão, nós víamos, na outra ponta do bloqueio já era muito grande, e se a coisa estourasse, éramos poucos, e seríamos alvos fáceis para o choque permanecendo na praia. Eu fui com a turma que seguiu pela Rainha Guilhermina.

Infelizmente eu não vi como tudo começou. Quando chegamos à esquina da Guilhermina com a San Martin, víamos e ouvíamos tudo: bombas de efeito moral, tiros de borracha, fumaça, barricadas em chamas. E isso vinha não só da esquina da Aristides, como também do outro lado - paralelamente, um grupo grande se manifestava na Bartolomeu Mitre, a algumas quadras dali. Eu ouvi, depois, que houve um incidente num prédio da Globo naquela rua, e foi o sinal para o choque abrir fogo simultaneamente lá e cá. Então, parados no cruzamento sem saber de onde viria o fogo, alguns começaram a usar tudo que podia ser inflamável ou tirado do lugar e para fazer barricadas na rua. Eu caminhava tranquilamente no meio disso tudo, exercitando a não-violência como nunca na minha vida. Enquanto o pessoal decidia o que fazer, eu caminhei na direção da Ataulfo de Paiva - a artéria central do Leblon - onde eu esperava traçar meu caminho até a Lagoa-Barra, por onde eu poderia ir para casa. Mas parece que meu caminhar incentivou o pessoal, e logo estavam todos lá (por isso parei num restaurante todo envidraçado e pedi ao maitre que estava na entrada para descer as portas de ferro).

A situação na Ataulfo era bastante tensa. É outra rua paralela à praia, também fazendo esquina com a Aristides e a Bartolomeu Mitre. A porrada estava comendo sem perdão na Aristides. Na intenção de levar o transtorno da guerra urbana para o Leblon e provocar a truculência da PM, alguns jogavam pedras em vidraças de lojas, quadros de publicidade, placas, sinais de trânsito, tudo que não fosse residencial e pudesse ser quebrado. Uma agência do Itaú foi completamente destruída (pelo que eu, pessoalmente, não senti qualquer remorso e até tive vontade de colaborar, porque atacar o banco é atacar o banqueiro... "não-violência, não-violência, estou caminhando com Gandhi...". Lamento pelos demais comerciantes que terão prejuízo). Não demorou muito para que outro pelotão do choque subisse a Rainha Guilhermina, assim como ainda outro pelotão que vinha subindo a Ataulfo por trás de nós. A gente sabe quando está na alça de mira das bombas do choque quando as luzes das ruas são apagadas (tanto para desorientar os manifestantes como para impedir as câmeras da prefeitura de registrarem os abusos). Quando as luzes se apagaram, a maioria rumou na direção da rua Dias Ferreira, o centro da boemia do bairro. Mas nisso também voavam pedras para todos os lados. Eu fiquei com medo das pedras (porque pedra não tem alvo), e procurei sair dali o mais rápido possível. Prefiro balas de borracha.

Nem lembro como cheguei na Dias Ferreira. O choque foi empurrando todas as frentes para lá, especificamente para a esquina da Pizzaria Guanabara, onde caímos numa armadilha. Luzes apagadas, alguém veio avisando que o BOPE estava vindo da Bartolomeu Mitre. O choque avançava pelas transversais, empurrando mais gente para o cruzamento. Ali foi o grande erro deles: a rua estava cheia, os bares com suas cadeiras nas calçadas lotadas de moradores locais, que aproveitavam para ver o jogo do Flamengo pela TV. Carros estavam estacionados na rua. Acuados, os manifestantes com mais "sangue nos zóio" destruíam tudo que podiam, jogando todo tipo de coisas na rua. A maior parte dos manifestantes estava acuada na calçada para tentar fugir do fogo cruzado (pedras contra balas de borracha). Então explodiram as bombas, a fumaça tomou conta, e quem ainda não tinha sido batizado com gás lacrimogênio, como eu, experimentou a sensação pela primeira vez ali. Inclusive o pessoal que só estava ali tomando uma cerveja, e os que estavam trabalhando, indistintamente. Nessa hora é que vale a pena ser vândalo, porque, já que a punição da polícia não distingue culpados de inocentes, pelo menos você não se fode à toa. Para minha sorte, encontrei uma máscara com filtro de carvão no trabalho, e embora os olhos ardessem, ainda consegui respirar.

Entrei numa rua qualquer, onde uns 10 PMs "normais" (sem o aparato do choque) fazia um cordão frouxo. Passei por eles de braços levantados, na hora que um deles deu o comando para avançar, e então me vi na Visconde de Albuquerque, fora da confusão, e com caminho livre para a Lagoa-Barra. Um amigo meu me telefonou na outra ponta da avenida oferecendo carona, então lá estava eu de novo na Ataulfo de Paiva, na cabeceira da rua. Tudo que não era residencial estava apedrejado, quebrado, queimado, e jogado na rua, impedindo os cruzamentos. Ataulfo faz esquina com a Dias Ferreira, e cerca de 15 metros adiante com a rua Rita Ludolf (onde o choque também botou gente pra correr), e os dois cruzamentos estavam impedidos. A maior parte dos manifestantes que ficaram para a guerra se reagrupou depois dessa segunda barricada, na altura da Aristides Espínola, esperando ou o choque chegar para o confronto, ou relaxar a segurança do quarteirão do Sérgio Cabral e permitir que todos voltassem para lá. Eu e meus amigos ficamos na primeira barricada, onde havia pouca gente. Patrulhas da PM criculavam na Visconde de Albuquerque (desses eu tenho medo, são esses que prendem, torturam, e somem com as pessoas... o choque, pelo menos, é previsível), ônibus com reforços iam em direção à praia, onde um grande pelotão se reunia. Um pequeno grupo do choque, armado apenas de escudos e cacetetes, subiu de maneira hesitante a Rita Ludolf. Eu vi na hora em que eles foram destacados de um grupo maior que estava correndo a San Martin em direção à Bartolomeu Mitre, num momento de desorganização. Se o pessoal que estava além da segunda barricada soubesse que havia um grupo pequeno de PMs basicamente desarmados, ia rolar uma carnificina ali. Foi quando eu fui embora.

Levar a guerra, que seria inevitável, para o meio do Leblon foi uma estratégia interessante, porque expõe aquela parte da cidade aos métodos da polícia que eles acham que está lá para protegê-los, mas que vai atirar bombas e gás lacrimogênio neles, nos seus filhos e nas suas propriedades indiscriminadamente. E que eles tem um governador, um vizinho, que é quem causa tudo isso e deixa acontecer. Porque fazer isso na Zona Oeste, na Rocinha, na favela, ninguém ligaria a mínima, porque "bem feito, na favela só tem bandido mesmo". Desde o começo da onda de manifestações, somos todos tratados como favela. A nobreza precisava sentir isso na pele - e nos olhos também.

PS: duas observações pertinentes, que eu só percebi quase indo embora:

Uma: a estratégia manjada do governo (com a colaboração da prefeitura, que é a responsável pela limpeza das ruas) de jogar a opinião pública contra as manifestações através de atos de vandalismo foi feita com caçambas de entulho espalhadas por todo o bairro. Na Rainha Guilhermina tinha uma, onde a galera se armou para quebrar tudo mais à frente. Na entrada da Niemeyer tinha outra, que não foi usada porque ninguém correu para lá. Eu passei por um tijolo de concreto largado numa calçada. Havia munição à vontade. Cortesia do Eduardo Paes.

Outra: Por volta de 11:45, quando eu estava na barricada da Ataulfo de Paiva com a Rita Ludolf, tudo ficou tranquilo. As pessoas conseguiram se reagrupar mais à frente porque o choque parou de atirar. O pequeno grupo do choque "desarmado" que eu vi subir a Rita Ludolf tinha sido destacado de um grupo maior e colocado ali para apanhar, porque eles não poderiam fazer nada para impedir o avanço da turba, nem dispersar ninguém só com escudos levantados e cara feia (de medo, na verdade). Nesse horário acabou o jogo de futebol, e um camarada que estava vendo TV pelo celular disse que a Globo estava entrando ao vivo, provavelmente também a Band... para cobrir a violência exclusiva dos "baderneiros" no nobre bairro do Leblon.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Quando o Estado se volta contra você

Quando a polícia desceu o pau na Avenida Paulista no dia 17, rebocando junto membros da grande imprensa que estavam cobrindo a notícia in loco, as manifestações ganharam a mídia e se multiplicaram pelo Brasil. De lá pra cá, duas semanas apenas, governos federais, estaduais e municipais se mexeram, executivo, legislativo e judiciário agilizaram projetos e processos, tudo para acalmar o furor nacional. Mas a revolta não terminou, porque quase nada do muito que precisa ser feito ainda está longe de ser feito. O que mudou é a maneira como ele está sendo administrado pelo poder público e divulgado pela mídia. As pessoas continuam saindo de suas casas e seus locais de trabalho para reivindicar serviços públicos compatíveis com a carga de impostos que eles pagam, pelas liberdades individuais, pela manutenção de uma estrutura minimamente democrática onde a repressão não exista, onde a justiça haja, onde as leis beneficiem o cidadão e não o cultive como uma casta inferior à dos "dotô". O povo continua gritando, mas menos pessoas estão ouvindo...

Pois bem, de amigos que estiveram lá ontem, dia 30/06 e outros relatos de testemunhas que participaram da passeata de ontem a noite perto do Maracanã - e até daquelas que tiveram a infelicidade de apenas estarem lá, morarem lá - tenho lido relatos que deixariam arrepiados os veteranos dos movimentos estudantis urbanos contra a repressão militar no regime que, nominalmente, já se foi. São os mesmos gritos de antes, aos milhares, vindos da direita e da esquerda, por justiça, por liberdade, por transparência, contra a concessão de obras públicas a administradores particulares - na prática, sua privatização. E são as mesmas táticas de guerra usadas pelo poder público para calá-los: quando as pessoas mostram que não tem medo e não vão sair dali, as balas de borracha são disparadas à altura do rosto, bombas de gás e efeito moral são disparadas (por canhões, morteiros, e helicóptero), espalhando a multidão para as ruas do entorno - onde mais policiais estão aguardando para disparar sobre os que estão tentando escapar. E, enquanto avançam para manobrar o povo em fuga para seus abatedouros, eles atiram em tudo e em todos que possam produzir provas do que eles estão fazendo - atiram com balas de chumbo em transformadores para impedir filmagens, enquanto câmeras da prefeitura são convenientemente desligadas ou desviadas para não registrarem as ações. Advogados da comissão de Direitos Humanos da OAB foram acossados mesmo depois de se apresentarem como tais, demonstrando não só o desprezo do Estado representado pela corporação pelo cidadão como pelas organizações civis. É a polícia servindo como a Guarda Pretoriana de um mini ditador que a usa como escudo contra o povo que está farto dos seus desmandos.

Hoje passei boa parte do dia repassando esses relatos que vinham chegando para a minha lista de amigos, porque elas nunca saberão de nada disso pela grande mídia. A Globo, no Jornal Hoje, fez com que a primeira passeata do dia parecesse um passeio de pais e filhos, e a segunda, um arrastão de "vândalos" e "baderneiros" (vocábulos nunca usados com tanta ênfase, e mesmo assim seletivamente, porque no Egito, por exemplo, são "manifestantes" que atacam prédios públicos e sedes de partidos políticos). Mostraram o "front" dos manifestantes, com mascarados prontos para o combate inevitável fazendo um cordão humano entre os demais protestantes e a polícia, prontos para levar o primeiro impacto quando fosse dada a ordem de abrir fogo. Em seguida mostrou-se um corre-corre, e uma preocupação com o policial que teve parte da farda queimada por uma bomba incendiária jogada contra a PM depois que ela abriu fogo. A TV mostrou exatamente este momento em que a polícia iniciou o confronto armado, mas mesmo assim o texto lido pelo âncora tentava me convencer do contrário (até por isso corri de volta para o facebook recolher os relatos de quem estava lá). Os feridos, os que tiveram bombas caindo em suas varandas, dentro de seus apartamentos, os que foram ameaçados com armas de fogo, foram violentados com gás de pimenta depois de rendidos, os espancamentos, as casas que foram invadidas sem mandato para caçar os fugitivos, nada disso foi noticiado, e nem será. Porque interessa à mídia acalmar o povo, porque ela própria é um dos alvos da sua fúria, assim como os políticos que garantem as suas concessões nacionais e regionais.

Outro dia eu escrevi, me referindo na ocasião à igualdade racial (era uma data significativa para a luta pela igualdade racial nos EUA), que é preciso combater essa monstruosidade, mesmo que isso nos torne foras da lei. É preciso também que lutemos pela nossa liberdade, pelo direito de nos colocarmos contra a classe dominante, que, desde há muito tempo não se via assim de uma forma tão literal. Acabamos de passar por uma chacina no Complexo da Maré, que teve como desculpa um arrastão na Av. Brasil e um policial morto. Disso resultou uma operação do BOPE com 10 mortes, 3 delas, praticamente 1/3, de vítimas inocentes. Na favela não tem bala de borracha. A cobertura disto também tem sido pobre, porque pobres eram os que morreram; para a mídia isto faz diferença. Mas estamos vendo que, para o Estado, somos todos pobres, somos todos empregados, somos todos subclasse, a menos que nos calemos e nos conformemos, fingimos que nada está acontecendo, porque senão os próximos seremos nós, seremos pegos pela única força do poder público que deveria proteger os nossos direitos fundamentais, que é a polícia. É a tática da intimidação que tem calado as favelas há décadas, fazendo-as parecer para o "asfalto" como comunidades satisfeitas com as suas valas negras, ruas sem luz, sem água, sem serviços públicos, sem cultura, sem direitos, sem rua, sem nada. E é a tática que eles querem empregar agora contra os que se levantam. Querem nos calar pelo medo. Como eu já disse, é preciso combater esta monstruosidade, mesmo que isto nos torne foras da lei. Porque, se você não se revolta, você se torna um deles.
 
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