quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Rush, ou de como é realizar um sonho de uma vida

Acho que eu vou ter que fazer um cross-posting com o Histórias da Fórmula 1 :^P

Você tem algo que sempre quis? Quando digo "sempre", quero dizer sempre mesmo, não algo que você descobriu há duas semanas ou há 10 anos e, desde então, o desejou. Algo que você deseja desde que você se lembra de ter se dado por gente?

Desde que eu me dei por gente eu amo Fórmula 1. Não tem explicação, não tem um fato motivador, como ir a um autódromo, ou assistir uma corrida lendária de algum piloto carismático, nem por causa de Piquets e Sennas, nem seguindo uma campanha publicitária, nem através de amigos; já estava lá quando eu despertei para esta consciência. Meus ídolos da infância (tirando o Zico, que é foda) não eram jogadores de futebol, eram pilotos de corrida. Eu queria ser como eles e fazer o que eles fazem.

Ao longo da vida entendi que aqueles homens eram feitos de uma fibra muito diferente. Duvido que mesmo que meu pai tivesse dinheiro e investisse no meu desejo pueril de pilotar, eu não chegaria mais longe do que a maioria dos pilotos aspirantes consegue chegar - até onde dá o dinheiro, ou até encontrar algo melhor pra fazer. Porque um Niki Lauda, um Alain Prost, um Ayrton Senna não são a maioria, não são um qualquer. Eram os melhores no que faziam, muito melhores do que os seus colegas, que já eram a elite dos pilotos de corrida. Como tudo na vida, você deve se esforçar para ser o melhor no que faz, mas o talento vai decidir se você será o melhor. E o que resta aos mortais é a satisfação da auto superação. Meio pessimista, mas é o que nos faz adotar pessoas extraordinárias como ídolos, sombras do nosso próprio superego.

A primeira pessoa famosa de que eu me lembro conhecer foi Niki Lauda. Provavelmente por influência do meu pai, que era fã do austríaco, provavelmente também porque ele fez um campeonato magnífico em 1984, ano em que eu me tornei um telespectador regular da categoria, aos 5 anos. É engraçado como funciona a cabeça da criança: eu conhecia o Niki Lauda, mas não sabia quem era fora do capacete e do vermelho e branco da McLaren. Achava que qualquer piloto era o Niki Lauda. Senna concedendo entrevista numa cama de hospital após um heróico sexto lugar no GP da África do Sul de 1984, e eu tentando entender como o Niki Lauda falava português tão bem. Lembro do Galvão Bueno saudando Niki Lauda na sua última corrida, no ano seguinte, e minha memória construiu um Lauda abandonando a corrida, acenando para o público e entrando num helicóptero para deixar aquele mundo e voltar para casa. Não sei o quanto disso é verídico ou inventado ou reconstituído de cenas soltas e independentes, mas posso ver a imagem na minha cabeça enquanto escrevo.

Niki Lauda teve uma história formidável na Fórmula 1, que eu fui aprendendo com o tempo. Uma ascenção rápida, um título mundial, um acidente quase fatal, seu retorno um mês e meio depois, mais um título mundial, o embate com Bernie Ecclestone (que, na sua biografia, alega ter sido a única vez em que ele se deu mal numa negociação com pilotos, quando Lauda foi para a Brabham e depois saiu porque estava de saco cheio de correr com um carro ruim), sua aposentadoria, sua empresa de transporte aéreo, seu retorno visto com ceticismo e seu último título mundial. Em parte aprendido em literatura, em parte pelo que meu pai relembrava dos anos 70.

Eu sempre consumi Fórmula 1. Foda-se se é cheeseburger de capitalismo com gordura trans. Na TV, nos meus brinquedos; um autorama do Nélson Piquet, carrinhos Matchbox, revistas, modelos de montar da Tamyia, álbuns de figurinha, vídeo games (desde o Enduro no Atari e das fichas gastas numa máquina de Pole Position quando eu nem tinha altura para usar o volante e apertar os pedais ao mesmo tempo, e atualmente no Formula 1 2009 no PSP, que eu jogo nas minhas longas viagens de ônibus pela cidade, fingindo que os solavancos e curvas são reações do meu carro). Fui ao autódromo assistir os treinos de sábado do GP do Brasil de 1984 e à corrida em 1987. Eu podia passar um dia inteiro simulando uma corrida com meus carrinhos numa pista desenhada numa prancha de madeira. Até andar de bicicleta era um pretexto para que eu fosse o Senna na Lotus e disputasse um Grande Prêmio com meus amigos em volta do meu prédio. Andar num kart com motor de cortador de grama por R$15,00 (em valores da época, em cruzeiros, cruzados, cruzados novos, cruzeiros de novo, cruzeiros reais...) num terreno irregular perto de casa era glorioso. Lembro de todas as sensações das duas vezes em que andei num kart de estacionamento mais "profissional", já na faculdade, inclusive da batida que me jogou longe e deu um preju no dono do negócio com um chassi destruído :^P

Um ponto marcante nessa minha vida ligada à superfície da Fórmula 1 foi quando fui apresentado ao filme Grand Prix, de John Frankenheimer, quando conheci - com a assessoria do meu pai - uma época ainda mais antiga. O barato do filme é que, em volta dos atores principais e das historinhas de romance, estavam lá os próprios pilotos da Fórmula 1 daquela época, e cenas filmadas nos próprios grandes prêmios de 1966. Filme legalzão, que valeu cada centavo quando comprei o DVD, já adulto, com fios brancos na barba e dores nas costas. Mas quando eu era criança, Grand Prix era muito distante para mim. Eu conhecia Jim Clark, Graham Hill, Jack Brabham, John Surtees, mas eles eram apenas figurantes ali (que eu não reconheci até ter mais conhecimento do assunto, anos depois), então a sensação de "oh, que legal, são os caras!" nunca me atingiu como atingiu o meu pai. O enredo do filme gira em torno de romances de personagens fictícios e rivalidades que parodiam e mesclam histórias verídicas acontecidas em vários momentos diferentes da história da Fórmula 1. Diante das imagens espetaculares das corridas, mesmo as cenas filmadas com carros de Fórmula 2 maquiados e dublês (menos o do protagonista James Garner, que, segundo o instrutor de pilotagem do filme, poderia ter sido um piloto profissional e dispensava dublês na maioria das cenas), o enredo é o ponto fraco do filme. Fosse um filme sobre o título mundial de Phil Hill após a morte do seu concorrente direto e companheiro de equipe Wolfgang von Tripps na última corrida do ano (um dos elementos transportado para o enredo de Grand Prix) talvez tivesse outro efeito, em outro momento.

A Fórmula 1 é cheia de histórias interessantes. Aquela coisa do piloto de ponta ser constituído de uma fibra diferente resultou em momentos extraordinários dentro e fora das pistas que merecem livros. Ou filmes. E eu sempre, sempre ansiei por isso. Um filme fiel aos fatos... não como aquela coisa ridícula do Sylvestre Stallone resolvendo suas diferenças com um rival levando dois Reynards da Indy para uma estrada movimentada...

Então veio Rush. Rush juntou tudo isso que eu escrevi acima, misturou tudo, e jogou tudo na minha cara durante duas horas em que eu nem consegui me mexer na cadeira - eu estava ocupado demais para me importar com meu próprio corpo. Eu poderia contar o filme e apontar minhas partes favoritas, porque, afinal, a história é de domínio público e eu já dedurei vários pontos aí em cima, mas como ele é um veículo para que leigos se aproximem do esporte, prefiro apenas dizer que, mesmo sabendo de toda a história do filme de antemão, não tive como não sorrir por duas horas vendo um dublê de James Hunt queimando borracha num M23 reformado, de ver Marchs, Heskeths, Ferraris, Lotus, Brabhams recriados à perfeição, assim como os atores mudos que "enchiam" o grid - reconheci até a magnífica barba de Harald Ertl na cena do briefing do GP da Alemanha - e vestiam seus cascos facilmente reconhecíveis em situações verídicas - os dublês na cena do resgate usavam os capacetes dos pilotos que estavam presentes quando aconteceu. Não tive como não esmagar a mão da minha esposa enquanto a segurava quando Lauda bate em Nurburgring, e nem como não chorar quando ele retorna às pistas. Eu fui transportado para fora do tempo, me tornei criança e adulto, regressei à minha infância e a uma época anterior a mim, que eu frequento em pensamento. Eu estava vendo um filme e analisando a atuação de Chris Hemsworth e Daniel Bruhl, e estava vendo James Hunt se apegando à única atividade em que ele se sentiu confortável em fazer em toda a sua vida autodestrutiva, e um Niki Lauda consciente do seu próprio talento e dos seus próprios limites. O filme cumpriu o seu papel de me tirar da realidade por duas horas e me jogar num mundo de sonho, intenso, irracional, fora do meu controle. Não vou questionar se o enredo romanceado forçou a barra aqui ou ali ou deixou de ser fiel a este ou aquele fato, porque não tem a menor importância para mim. Quando as luzes se acenderam, eu senti a leveza e o alívio de alguém que esperou a vida inteira para poder, metaforicamente, quase espiritualmente, fazer parte daquilo.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

História em curso

De tudo que aconteceu desde junho passado, uma das coisas que tem me chamado mais a atenção tem sido como a Globo parece perdida diante das transformações sociais, no que tange à divulgação e ao acesso à informação por meio das redes sociais, que ela não controla. Pela primeira vez a Globo, que é dona dos 2 jornais de maior circulação no Rio de Janeiro, do único jornal direcionado da classe média pra cima que restou, e da emissora de maior audiência, além de vários canais na TV paga direcionados a públicos específicos (um "educativo" e outros para os de maior poder aquisitivo, diga-se de passagem), deixou de ser o único veículo de comunicação de massa.

O principal sinal de que alguma coisa estranha estava acontecendo nas redações desse conglomerado jornalístico veio nos dias que se seguiram à final da Copa das Confederações. Os telejornais veiculavam a notícia do confronto entre manifestantes em policiais militares nas ruas da Tijuca e do Maracanã, enfatizando que "a confusão começou quando manifestantes atacaram policiais com coquetéis molotov", enquanto a TV mostrava exatamente o instante em que policiais atiravam bombas e balas de borracha em manifestantes pacíficos ANTES do coquetel molotov ser atirado. "O policial atingido passa bem".

A posição da empresa sucumbiu diante do volume de vídeos, fotos, testemunhos de gente que estava lá no meio e de gente que nem estava participando do ato, e foi atingida pelos ataques das forças do Estado, no pleno exercício dos seus direitos, só porque estavam no caminho. Então, como tem gente inteligente lá dentro, alguma hora alguém percebeu que as pessoas não estavam engolindo as versões da emissora e dos jornais, e que, como uma enorme fatia do seu mercado tem facebook, e, portanto, acesso às informações não vinculadas por eles, a imagem da empresa (que reverte no valor do seu espaço publicitário, que é, no final, onde eles conseguem dinheiro) estava abalada. Depois disso, as notícias sobre manifestações passaram a um tom mais jornalístico, como quando um rapaz foi preso em Laranjeiras acusado de jogar um coquetel molotov sobre policiais, e, usando vídeos divulgados em redes sociais, a própria Globo, em tom investigativo, colaborou para inocentar o cara - foi um policial à paisana o autor do crime, com permissão da corporação, porque depois ele foi visto circulando despreocupadamente entre os colegas.

Mas as maquinações nunca pararam. Os manifestantes mais "radicais", os Black Blocs, que se colocam na linha de frente e enfrentam a polícia, garantindo a segurança dos demais manifestantes, foram os bois de piranha da vez. Já que não se podia mais criminalizar as manifestações como um todo (manifestações estas que tem a própria Globo como alvo também), devido aos muitos olhos que registram o que não passa na TV, a empresa passou a atacar implacavelmente os Black Blocs, inspirando medo em quem nunca os viu de perto. Agora não eram mais manifestantes cometendo vandalismo, eram os Black Blocs especificamente. E, manobrando a opinião pública, abriu-se a brecha para que a câmara dos vereadores proibisse o uso de máscaras em manifestações no Rio de Janeiro, permitindo, agora, que qualquer Black Bloc seja preso por esconder o rosto - então, agora, para enfrentar o poder policial, o sujeito precisa estar com a cara limpa, tornando um alvo fácil para ameaças, perseguições, e prisões posteriores... vocês sabem o que acontece quando você enfrenta um PM cometendo abusos.

A última da empresa dos Marinho foi divulgar uma nota justificando a sua postura diante do golpe militar de 1964 como um "erro de redação" diante das "muitas versões que circulavam no momento em que aconteceu". Lógico, tentando melhorar sua imagem e agradar um governo que se diz de esquerda e que, nos últimos 10 anos ela não conseguiu abalar (nem depois das grandes manifestações de julho e das tentativas ultraconservadoras de guiar essas massas contra o governo federal). Aí, o general Clóvis Purper Bandeira, que não tem a menor simpatia pelos ex-guerrilheiros que compõe o atual governo, escreve isto, dizendo que "erro de redação é uma ova": http://www.jb.com.br/pais/noticias/2013/09/03/jb-publica-carta-do-gal-clovis-bandeira/

Definitivamente, se houve alguma revolução resultante dos movimentos, foi na relação da imprensa com a informação e os receptores de informação, que está circundando os seus veículos de comunicação e chegando sem filtros ao público que, em tese, é seu. Esta revolução ainda está em curso, e seu resultado final ainda não tem forma. Mas está sendo muito interessante observar todo o processo.
 
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