quinta-feira, 6 de março de 2014

Somos um Rio de lixo

A greve dos garis do Rio em pleno carnaval é uma oportunidade de ouro para todos nós aprendermos algumas lições muito importantes, uma sobre responsabilidade social, e outras duas sobre relações de classe aqui na nossa cidade:

1- Quando somos crianças, mamãe e papai fazem tudo por nós até termos idade e discernimento para assumir essas responsabilidades. Enquanto crescemos, somos lentamente abraçados pelo Estado, que nos oferece serviços em troca de impostos. Mas, sem medo de errar com uma generalização, a grande maioria aceita os serviços oferecidos em troca da sua responsabilidade pessoal pelos impactos que ela causa no lugar onde ela vive. Porque é diferente a maneira como uma pessoa que depende de um poço artesiano lidar com a questão da água (inclusive com a questão da limpeza da água) e a maneira que alguém que sempre teve serviço de água encanada em casa. O primeiro dificilmente será visto lavando a calçada com a mangueira porque entende que o seu suprimento de água é limitado - como também é o do que tem água encanada, mas ele nunca sente, até que começa a faltar água no sistema, quando então ele responsabiliza a empresa. A mesma coisa acontece com a maneira como lidamos com lixo. Tem uma empresa lá que recolhe o lixo, então o máximo que a maioria se dá ao trabalho de fazer é juntar tudo em sacos e deixar na porta de casa. Tem garis varrendo a rua, então pra que se preocupar com um papelzinho amassado? Mas não há nada que nos impeça de produzir mais lixo do que o necessário, de desperdiçar comida, de jogar fora material próprio para adubo orgânico, de usar objetos descartáveis em detrimento de itens reutilizáveis equivalentes (que precisam ser lavados ou sofrer qualquer tipo de manutenção), de não se importar em separar materiais recicláveis para serem entregues nos locais adequados. Enfim, junta-se tudo num saco que será esmagado por um caminhão e desaparecerá de vista, junto com o problema. Vi num artigo que, em Fortaleza, em 12/2012, cada pessoa produziu em média quase 2 kg de lixo por dia (não contando seus excrementos). Eu sei que eu produzo menos de 1 kg nos três dias entre as coletas de sexta e segunda feiras, e que há outros como eu, então se essa é a média, a coisa é muito grave. A questão do lixo não é só uma questão de limpeza, porque todo esse lixo precisou ser produzido um dia, e consumiu recursos naturais não renováveis e energia para isso, e está sendo devolvido à natureza na forma de detritos que não se decompõe e em contaminantes da água e da atmosfera. E tudo isso porque perdemos (ou nunca tivemos!) o nosso senso de responsabilidade pelo que consumimos e pelo que é feito com o que deixamos para trás. É menos uma questão de instrução formal, porque os mais ricos e com mais formação produzem mais lixo, mas mais uma questão de educação, no sentido de formar pessoas que sabem que estão integradas a uma sociedade, e que tudo que elas fazem produz reflexos que afetam as suas próprias vidas, inclusive essa necessidade voraz de consumir o que não é necessário, porque é isso que significa bem estar e progresso.

Para não dizer que estou mergulhando no comunismo utópico, vou dar o exemplo da Tóquio capitalista para mostrar que, embora esta sociedade seja terrivelmente consumista, a questão do lixo urbano e da noção do impacto pessoal de cada um no meio ambiente pode afetar positivamente a qualidade de vida para todos. E é necessário que isso aconteça aqui também.

2- Muitas pessoas devem estar se dando conta pela primeira vez da importância do profissional de limpeza urbana para o bem estar social. Muitas pessoas, especificamente dos bairros mais ricos e estruturados, onde o serviço de coleta de lixo é habitual, porque nas favelas que o Estado abandonou (e onde, ironicamente, a maioria dos garis é forçada a morar, dado o seu salário), isso é sentido há muito tempo. Esse profissional é tão importante quanto o policial, o tabelião, o legislador e o juiz, porque a ausência qualquer um deles impossibilita o funcionamento de toda a sociedade no sistema em que vivemos. Mas quando você deu bom dia para o gari que estava varrendo a rua na sua frente e o tratou por "senhor" ou "senhora", ou quando você viu uma prefeitura pagando ao gari o equivalente a outros profissionais da área administrativa com a mesma escolaridade e sob a mesma carga horária? Não raro, o gari é uma figura desumanizada, numa função indigna e degradante, associado inconscientemente à sujeira (que você produziu e ele está limpando), precisamente como tratamos os catadores de material reciclável, que são vistos como mendigos puxando carroças - um primo meu, que se envolveu em projetos com catadores, que o diga. É uma oportunidade para avaliarmos o grau de distorção da nossa percepção desses pessoas em níveis pessoais, profissionais, e do seu papel na sociedade. E de mudar isso.

3- Parecido com o item anterior, mas um pouco mais grave que eu prefiro não generalizar, porque quero acreditar que isso não é tão difundido - mas que a prefeitura deixou transparecer de forma que foi a primeira coisa que me revoltou nesse episódio todo e me fez tomar posição em favor dos garis: a percepção da função social do gari, como alguém que está na obrigação de recolher tudo que você joga fora. "Obrigação", não porque este é o trabalho para o qual eles se dispuseram a fazer, mas porque é seu direito jogar o lixo que quiser e onde der na telha. Afinal, você paga impostos, e paga também o salário do gari (como se ele não os pagasse também). A prefeitura atual parece entender dessa forma. Ao paralisar os trabalho, primeiro garis em passeata foram recebidos pelas forças policiais como habituais perturbadores da ordem - com balas de borracha e gás lacrimogênio. Depois, quando sua greve foi considerada ilegal pela justiça, 300 garis grevistas, sobretudo os responsáveis pela limpeza das regiões da cidade com maior atividade durante o carnaval, foram avisados a comparecer à sede da empresa para tratar da sua demissão - decisão revogada ontem. E os que estão na ativa estão escoltados por agentes e veículos da Guarda Municipal, que se certifica de que eles realizarão o trabalho que lhes for determinado. Os garis pleiteiam, entre outras, reparações de perdas salariais das duas últimas gestões municipais, reajuste no vale refeição, e um plano de saúde confiável que tenha uma rede que atenda a cidade como um todo e tenha como atendê-los no que for necessário. Você pode imaginar a pessoa que limpa as coisas de que você tem nojo sem plano de saúde? E, mais uma vez, ao invés de atender a reivindicações, o Estado escolhe se colocar como antagonista da classe, como se a cada greve fracassada ou manifestação debelada ele ganhasse um troféu. E, ao invés disso, descarta os profissionais que estão dentro do seu direito legítimo de reivindicação, e os demais são obrigados a trabalhar sob a vigilância de capatazes. Isso expõe uma relação de poder que era mais comum de se ver antes de 1888.

Mas ainda bem que esta greve aconteceu, e aconteceu no momento e local em que causa maior transtorno para a cidade. Para olharmos as montanhas de lixo, que é nosso, e entender que fomos nós que fizemos isso.

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