quinta-feira, 21 de maio de 2015

O Sinistro

Todas as atividades que me dão prazer, as tenho realizado por motivos práticos: por inércia (trabalho, sociais), para preencher lacunas de tempo (ler, escrever, desenhar, games, música), ou por obrigação (comer, pedalar). Nenhuma delas pelo prazer que proporcionam. Isso tem me esgotado sobremaneira. Isso tem convergido e se manifestado em estafa, indiferença, e sonhos perturbadores, como esse abaixo. É preciso desacelerar:

"São 4 da manhã e eu estou escrevendo na esperança de tirar um sonho da cabeça e voltar a dormir.
Tudo começou quando ouvi falar que existia um filme sobre dois dançarinos que conquistavam pessoas e despertavam paixões enquanto competiam entre si. Era um dançarino espanhol e outro egípcio. Eram dois estereótipos cômicos dos anos 50 de amantes exóticos que faziam as mulheres suspirar com o poder dos seus bigodes e do seu sapateado. Ambos se chamavam algo como "Pés-dançantes-e-quadris-pulsantes" nas suas respectivas línguas (a língua do egípcio era francês), e um contra o outro era o nome do filme. Era esse o nível de absurdo.

Até aí foi divertido.

Acontece que esse filme evocava um ser maligno, que não tinha nome, mas vou chamar de Sinistro. Ele apareceu da seguinte maneira:

De alguma forma eu me vi participando do filme como figurante ou expectador ao vivo. Entre uma cena e outra, eu me vi com dois espanhóis encostados num carro, na praia do Leblon, conversando sobre diferentes formas de se pronunciar as mesmas palavras em diferentes lugares em espanhol e português. Vale dizer que era noite, e que o sonho inteiro se passava à noite. Foi quando passaram por nós dois garotos correndo. Eram dois meninos negros sem camisa, de no máximo 5 anos. Correram em direção ao rochedo no começo da praia, onde fica a colônia de pescadores. Eles estavam machucados e assustados, e eu vi que precisavam de ajuda. Fui até eles e detive um pelo ombro. O outro fugiu, e ele se debatia mesmo quando eu ofereci ajuda.

Então surgiu um homem com uma capa de chuva preta, capuz cobrindo a cabeça. Numa fala calma, mas bastante afetada, ele dizia que agora estava tudo bem, me agradecia, e falava amigavelmente com o menino. Eu o soltei. O homem o pegou pelo braço, o ergueu do chão, e começou a devorar uma perna. O menino urrava de pavor.

Fiquei desorientado por uns momentos. Quando me dei por mim, estava estabelecido que esse Sinistro seria um assassino em série que tinha preferência por mulheres e crianças, que ele devorava ainda vivos.

Eu estava entre fugir e acabar com ele, quando o encontrei novamente, comendo a carne de outra criança. E eu pude ver a sua aparência: Era um homem muito alto, mas muito curvado que o fazia mais baixo que eu. Parecia nu sob a capa. Sua pele era branca, mas ela desaparecia nas articulações dos membros, expondo restos de carne arruinada; o rosto parecia ser composto por retalhos, com lábios, nariz, bochechas, testa como se tivessem sido colados separadamente um sobre o outro, e não tinha cabelo. Não lembro de olhos. Numa atitude macabramente cortês, como antes, ele me explicou porque fazia aquilo. Deus havia criado o homem imperfeito e fomentado o pecado plantando uma árvore proibida no Éden, resultando inevitavelmente em sua queda. Sendo a queda programada e o pecado um aspecto do divino, ele entendia que cometer os pecados mais abomináveis - o assassinato de inocentes e canibalismo - eram uma forma de adoração mais elevada. Ele sinceramente acreditava estar praticando o bem maior.

Ele então mudou subitamente de atitude e partiu furiosamente para cima de mim, querendo me matar ou me comer vivo. Eu tentava escapar, mas o tempo todo ele quase me agarrava. Consegui pegar um machado e golpeava a esmo tentando afastá-lo. Consegui golpeá-lo na cabeça, mas ao ver que isso não o matava, golpeei várias vezes, destruindo seu crânio. Mas nem isso o detinha.

Nessa hora acordei, e ainda tomei um baita susto ao olhar as roupas pretas penduradas num gancho na parede do meu quarto. Respirei por alguns momentos, rolei na cama com o sonho fresco na memória e voltei a dormir. E voltei a sonhar.

Neste outro sonho, que também se passava à noite, eu estava na rua (a mesma rua onde encontrei o Sinistro pela última vez), entre os meus colegas de trabalho, e eu contava a eles o que tinha acabado de sonhar. Foi aí que eu concluí que o filme dos dançarinos continha uma maldição, e que além disso, outros objetos em cena, como umas varas de bambu que compunham uma das cenas do filme (e que estavam ominosamente ali presentes naquela outra "realidade") também continham uma energia negativa. Procurei jogar tudo fora.

Uma das minhas colegas, que é espírita, começou a falar de algo que ela chamou de "seres transversos", que eram espíritos que habitavam as casas e circulavam livremente nelas, nos atravessando o tempo todo sem percebermos, por serem imateriais, mas que nos influenciavam positiva ou negativamente.

Eu me vi num prédio, e eu podia ver o interior do prédio como se olhasse um recorte vertical esquemático dele, ao mesmo tempo em que eu me via dentro dele, cercado por paredes. E eu podia ver "seres transversos" fluindo suavemente por toda a construção, subindo e descendo em diagonais, indo de um lado para outro. Eles eram de luz. Mas entre eles havia um único vulto furtivo que vez ou outra surgia de relance. Então, de repente, num susto, ele apareceu claramente na minha frente. Sua forma era uma espécie de anel grosso e negro, com um rosto angulosamente estilizado no estilo maia entalhado. Eu entendi que ele era a razão de eu ter tido aquele sonho anteriormente. Então eu enxergava tudo escuro em volta dele, e conforme a minha angústia aumentasse, eu via chamas. E de repente os seres de luz sumiram, e o meu prédio era uma coluna espiral de fogo em fúria. Era o próprio inferno, e o tal anel flutuava e girava no meio de tudo, e eu tentava sair desesperadamente. Gritava, pedia por socorro, mas eu estava só.

Então, por um momento, no meio desse caos, eu não enxerguei paredes. Eu podia ver a rua. Me arrastei para fora dali, e a visão desapareceu. Meus colegas ainda estavam ali, me olhando com estranheza, porque só eu tinha visto aquilo. O prédio nunca havia existido. E eu entendi que o prédio, e todos aqueles seres que o habitavam... eram eu."
 
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