sábado, 22 de agosto de 2015

Cocos em volta de uma lata de lixo vazia

Eu escrevi isso há algumas semanas:


A foto é ruim porque foi tirada à distância já ao anoitecer. Fim do dia na Praia do Pepê. Até uma hora antes, estava cheio de gente. Naquele momento, o que restou: uma lixeira cercada de cocos vazios. Toda a área da areia em frente ao deck de uma paleteria estava cheia de cocos e outros detritos. Uns barraqueiros até juntaram seu próprio lixo em torno de outra lixeira. Mas o que os banhistas consumiram ficou para trás. Apesar das lixeiras posicionadas a 10, 15 metros umas das outras, nenhuma delas aparentemente cheias que justificasse não jogar mais coisas dentro, pelo que deu para ver de onde eu estava, e pelo que eu procurei registrar na foto.

Fiquei pensando por que as pessoas não se deram ao trabalho de jogar os cocos na lixeira. Na foto eles foram displicentemente deixados em volta da lixeira, que esteve ali aberta o dia inteiro. Me ocorreu que, talvez, sejam aquelas pessoas que se justificam dizendo que estão dando trabalho para os garis (que fazem o trabalho fenomenal de deixar aquilo absurdamente limpo no dia seguinte). E me ocorreu que essas pessoas provavelmente são aquelas que delegam a outros funções que as aborrecem ou que achem indignas. A função trivial de dar o destino apropriado ao seu próprio lixo.

E pensei mais. Eram muitas pessoas na praia e muitos cocos na areia, logo, era muita gente que não sai do seu lugar sequer para dar cinco passos até uma lixeira e jogar seu lixo lá dentro. Será que essas pessoas saem do seu lugar para coisas mais importantes e mais difíceis de se fazer (como trabalhar em soluções para o bem estar coletivo de moradores e empregados dos seus condomínios, do seu bairro, da sua cidade), ou delegam isso a outros também?

Eram muitos cocos. É muita gente que estabelece essa relação de dependência quando se recusa a fazer algo que exige que ela se mova. Porque escolher não fazê-lo não elimina a sua necessidade. Então se ela se furta de discutir planos para ocupação dos espaços urbanos, por exemplo, ela delega essa função a um político. Este político, que deveria ser um representante dessa pessoa adquire uma autonomia (e, portanto, uma potencialidade de poder) que não corresponde com a sua função. A apatia do cidadão cria mandatários muito mais poderosos do que deveriam.

De repente eu entendi porque somos um povo que dá tanta bola para os políticos. Porque somos um povo (desleixado) que espera eternamente que os bons exemplos de conduta e ética venham de "cima" (DE CIMA!). Porque estamos sempre buscando por líderes e heróis que nos mostrarão o caminho ou o que fazer e que nos conduzirão como crianças aqui e ali.

Sob uma perspectiva anarquista, digo tudo isso em tom de repreensão, e convoco para um momento de reflexão sobre quem vocé é e qual o seu papel na sociedade. A quem você serve?

Cocos na areia em volta de uma lixeira.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Preconceito: o meu e o seu

Dentre as muitas causas possíveis, estive pensando como o preconceito (dos mais graves e violentos até os mais banais) tem uma raiz fincada na falta de empatia pelo outro. E aí eu me deparei com um nó lógico, porque eu não consigo distinguir o que é a causa ou a consequência: a falta de empatia, e o fechamento da visão de mundo em si mesmo, ou seja, quando uma pessoa toma a si mesma como medida de todas as coisas.

Vou pegar um exemplo, que foi o que deu ignição neste pensamento ontem, enquanto estava no ônibus, preso no trânsito, e já peço desculpas adiantadas a todo mundo (e é muita gente, acho que a maioria dos meus amigos está entre eles) que está no alvo do meu preconceito:

Tatuagens.

Luto contra um preconceito meu contra tatuagens. E embora eu não possa esperar que me perdoem por ele, ao menos eu localizei a sua causa. A causa está em mim mesmo.

Preconceito é uma reação irrefletida a uma situação que não se encaixa em um padrão óbvio. Falo de padrões porque eles são mais ou menos construídos inconscientemente na nossa mente, porque nenhum preconceito resiste à razão. É imprescindível, para que haja preconceito, que a razão esteja momentaneamente suprimida. Uso como exemplo aqui um truque que qualquer um pode fazer em casa. Vá para o banheiro e, à meia luz, olhe-se nos olhos fixamente através do espelho por uns 5 minutos. O que é uma imagem processada conscientemente no início (você, a parede atrás de você, a toalha pendurada ao lado, o vaso quase fora do campo de visão no canto abaixo, etc.) aos poucos parece obscurecer enquanto você mira seus olhos. O seu corpo e o seu rosto (assumindo que você continua fixo nos seus olhos) podem começar a parecer estranhos, enquanto tudo em volta começa a ficar obscurecido e confuso. Porque você forçou o seu cérebro a fixar a atenção em um detalhe, onde ele estabeleceu um padrão, e tudo em volta, à medida em que se afasta do foco de atenção, fica cada vez mais confuso, porque o cérebro "se esqueceu" de processar aqueles padrões, que continuam lá, e os substituiu por imagens do inconsciente ou o que quer que estivesse na fila para se expressar ali e "preencher" esse vazio cognitivo. Descrever o mundo sob a ótica do preconceito é como descrever as assombrações que apareceram no espelho durante a experiência.

Antes de voltar às tatuagens, vou contextualizar um pouco. Durante a infância e a juventude nunca passei necessidades. Meu pai tinha um emprego que pagava bem e nossa família teve algum conforto. Até meus vinte e poucos anos eu tinha esse backup financeiro em casa que fez com que eu não me preocupasse em trabalhar e conquistar meu próprio dinheiro. Eu nunca fui consumista, e, de fato, mesmo vivendo com essa tranquilidade, foi n começo da faculdade que eu comecei o hábito de economizar o almoço para guardar dinheiro para outras coisas. Eu poderia simplesmente pedir para o meu pai, mas eu sentia que não era correto. Mesmo ainda vivendo sob o mesmo teto, quando comecei a ganhar meu próprio dinheiro eu nunca mais pedi nem aceitei dinheiro dele. Minhas viagens, meu lazer, minha comida, meu transporte, meu plano de saúde, e a conta de uma das linhas de telefone de casa (a que a gente usava para internet), eu que pagava. Quando eu tinha mais do que precisava, ia para uma poupança, porque sempre tem uma emergência de última hora que exige um capital disponível (e teve!). Quando eu não tinha, eu não fazia nada disso (e, eventualmente, me desfiz do plano de saúde e do telefone, e a tal poupança veio muito bem a calhar durante a penosa fase em que todos estavam desempregados). Minhas responsabilidade com dinheiro veio espontaneamente e aos poucos, mas a minha real noção de administração de dinheiro de casa veio de uma vez quando me mudei com minha então namorada, resolvendo esse processo em apenas duas semanas, e absolutamente tudo que eu fazia para mim, para nós, e para a casa precisava caber dentro do que eu ganhava na época. Com o meu histórico de poupador (novamente a minha poupança reconstruída nos dois anos anteriores foi extremamente providencial, porque os custos todos para alugar e equipar a casa e arcar com outros custos drenaram-na completamente no primeiro momento) isso acabou não sendo um problema, e, novamente, quando o dinheiro encurtava, eu cortava onde podia.

Administrando uma renda compatível com a classe média *média* eu consigo prover a mim e minha esposa de algum conforto, mesmo que, de vez em quando, eu precise cortar alguma coisa para chegar ao final do mês com dinheiro (desde o começo do ano até receber um aumento no mês passado, eu passava metade do mês evitando de almoçar para não gastar com comida, como eu fizera no passado, porque eu sabia que era um corte no orçamento que eu, pessoalmente, podia tolerar). É tudo apertado, para que não falte nada, o que me tira a possibilidade de gastar com extravagâncias e coisas sem utilidade prática. Some-se a isso ainda que ninguém na minha casa tem tatuagens ou já considerou fazê-las, de modo que isso também entrou no meu padrão mental.

Então, quando eu vejo um cabra com um braço inteiro tatuado, imediatamente me vem na cabeça: ele vive da grana do pai (especialmente quando ele é jovem demais para construir alguma coisa sozinho), porque ninguém que viva do próprio trabalho e tenha R$ 1500,00 pra encher um braço de desenhos bota comida na mesa. Não é sempre que isso acontece, mas eu preciso me esforçar para bloquear esse pensamento

Eu sei que é horrível isso. E eu encontrei o motivo de pensar assim.

EU ESTOU ME USANDO COMO MEDIDA.

Porque eu nunca tive como dispor de R$ 1500,00 na vida para qualquer coisa que não fosse comer e morar, eu penso automaticamente, atendendo aos meus padrões mentais, que se alguém dispõe desta quantia para algo meramente estético é porque não passa necessidade, ou não é responsável pelo sustento de ninguém. Eu penso nessa quantia em termos de "compras do mês", "passagens de ônibus", "latas de massa branca", nunca em algo que não seja vital para mim ou para a minha família. E se eu não paro, começo a associar a tatuagem com vaidade, surge uma sensação de desprezo e auto-exaltação, e começo a construir uma imagem da pessoa absolutamente minha.

O tempo inteiro eu procuro combater meus preconceitos praticando o desapego a mim mesmo, uma desconstrução do que eu tenho como certo e errado. Tirando os meus próprios padrões do caminho, construídos sob uma ótica absurdamente limitada das minhas próprias experiências, eu me torno mais capaz de exercitar a empatia, e a compaixão, de "calçar os sapatos do outro", de compreender que é perfeitamente possível que eu esteja completamente errado (meu exercício começa com a pergunta "e se eu estiver errado?"), e não cair na armadilha do julgamento. Embora o caminho até a compaixão universal seja longo e eu ainda não consiga ver o seu final, essa prática alivia a minha mente quando isso evita que eu fique matutando sobre a vida dos outros sem conhecimento.

Entender de onde vem o preconceito não pode servir como justificativa para você continuar praticando-o, como se isso fizesse parte de você. Seu pâncreas faz parte de você. Você é o que você constrói. E parte dessa construção é a desconstrução do que não é bom. Não significa tampouco que você deva aderir ao que quer que seja (por exemplo, que eu deva ir a um tatuador agora mesmo). Apenas que você reconhece que as pessoas podem ter muitos bons motivos, circunstâncias e contextos para fazer o que você normalmente não faria, e que você, por outro lado, também tem suas atitudes reprováveis que, para você, fazem todo sentido. O resto é cinismo.
 
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