terça-feira, 16 de agosto de 2016

Buenos Aires

Achou que depois do êxtase em Londres eu ia ficar quieto no meu canto aproveitando as memórias e enchendo a barriga de chá com biscoitos? Hah!

Pois em maio tomei coragem, uma sobressalência na minha poupança, e as libras que me sobraram de Londres, e parti com minha esposa para um fim de semana Buenos Aires! Dessa vez, apenas para fazer turismo, muito embora, por não estar em férias nem aproveitar o feriadão, pois fui na semana anterior a Corpus Christi, quando passagens e estadia estariam bem mais caras, contasse apenas com dois dias para fazer tudo. Então comecei decidindo que o voo deveria chegar lá o mais cedo possível numa sexta, e sair o mais tarde possível (pensando em termos de transporte quando chegasse no Rio) no domingo. Então chegamos lá numa sexta de manhã.

Optei por um voo da Aerolineas Argentinas que chegasse às 9:00 no Aeroparque. O Aeroparque é um aeroporto pequeno próximo ao Centro, uma distância que poderia ser vencida a pé (de táxi foram 20 minutos, talvez). A maioria dos voos desembarca no Ezeiza, aeroporto internacional de maior porte, mas muito na periferia da cidade. Para quem conhece o Rio, é exatamente a diferença, de tamanho e distância, entre o Santos Dumont e o Galeão. Na chegada ao aeroporto, você passa pela imigração. Com um documento de identidade com foto, você recebe um papel com o carimbo autorizando a sua entrada no país, mas tem o inconveniente de que você não poderá perder esse papel (parece uma notinha de supermercado), pois poderá precisar dele mais tarde. Levando o passaporte, você recebe o carimbo, e isso é útil quando você se apresentar à imigração de outros países no futuro, para mostrar que você tem idoneidade (não é um quesito objetivo avaliado na maioria das vezes, mas pode fazer o oficial ter boa vontade com você).

Na saída da área de desembarque você passa por um posto do Banco da Argentina, onde se pode comprar pesos. Fala-se muito das casas de câmbio e do câmbio negro (passei pela Calle Florida, onde a cada 5 metros tem alguém gritando "cambio!", de maneira tão natural que colocaram esculturas decorando a rua com borboletas de ferro onde de lia a palavra "cambio" nas suas asas), mas sou quadrado e fiz tudo da maneira legal. O táxi, cuja viagem foi tão curta, ficou salgado. O Uber em BA cobra metade do valor dos táxis pretos e amarelos.

Eu reservei um quarto no Rochester Concept, no chamado Microcentro. Como fiz em Londres, mapeei tudo que eu queria ver na cidade, medi distâncias, avaliei custos-benefícios, praticidade (presença de farmácias, restaurantes, lojas de conveniências, mercados), acesso ao transporte, comentários sobre a segurança aqui e ali, etc. O Rochester encaixou-se perfeitamente nas nossas pretensões e no nosso orçamento. Cheguei tão cedo que teria que esperar ainda 5 horas para dar entrada no hotel, então deixamos a bagagem lá guardada e fomos dar uma volta.

Um evento que seria central na viagem era o Cirque de Soleil, cujo espetáculo Kooza estava na cidade. Então saí com minha esposa para um café da manhã modesto (eu perdi, na Calle Florida, a cafeteria que eu tinha mirado enquanto planejava a viagem, e acabamos num Starbucks). De lá fomos para Puerto Madero, onde, numa longa caminhada, passamos pelo bairro reconstruído onde antes eram armazéns e indústrias ligadas ao porto. Agora, edifícios residenciais enormes e lindos (volto a isso depois), e praças e parques sem fim dominam a paisagem. Puerto Madero é uma ilha separada da cidade por um canal, e no seu lado oposto há uma reserva ecológica, uma avenida que a margeia, e um calçadão, com estátuas de esportistas argentinos notáveis e traillers com comida de rua. O Cirque ficava quase no fim dessa rua; fomos até lá cedo para ver se a bilheteria funcionava, mas não. Já que não deu certo, e chegava a hora do almoço, paramos para comer um choripán (pão com linguiça). De Puerto Madero, seguimos para San Telmo, bairro antigo onde chegamos ao adorável monumento em homenagem à Mafalda. De lá subimos pela rua Defensa em direção ao hotel, na Calle Maipú, passando perto da Casa Rosada.

Demos entrada, descansamos um pouco, achamos um ponto de venda, e conseguimos os ingressos para o Cirque. O espetáculo foi o melhor que eu já vi, e eu vi quase todos que vieram ao Brasil, graças aos contatos da minha esposa (foi a primeira vez que eu comprei ingressos para o Cirque). Fomos de Uber, mas voltamos novamente a pé. À noite, todos os restaurantes de San Telmo pareciam estar exibindo algum show de tango, pelo que se ouvia da calçada. Subimos pela 9 de Julio, antigamente a avenida mais larga do mundo - os canteiros entre as pistas largas são verdadeiros parques, e você pode demorar uns 2 minutos para atravessar ela inteira, sem contar o tempo de esperar o sinal fechar, porque ele vai fatalmente abrir enquanto você atravessa, tão grande é a distância de uma calçada a outra. A avenida excentricamente larga, contudo, permite que esse, que é o centro nervoso da cidade, tenha um cenário aprazível; ao invés de prédios colados uns nos outros e com vistas uns para os outros, e uma sombra eterna lá embaixo, vê-se o céu e o horizonte, e um panorama de parte da cidade do ponto mais alto da avenida. As avenidas Paulista e Presidente Vargas parecem claustrofóbicas e deprimentes em contraste.

Um adendo oportuno: a opção de estruturação urbanística de Buenos Aires contrasta muito com as de Rio de Janeiro e São Paulo. Enquanto nas capitais brasileiras, vale tudo para se aproveitar ao máximo o espaço e acomodar o máximo de pessoas possível no menor espaço possível, com todas as consequências para a mobilidade urbana que isso causa - ruas estreitas e excessivamente engarrafadas, transporte público cronicamente insuficiente, cenários fechados, ocupação desordenada, arquitetura meramente utilitária, poucos espaços públicos aprazíveis - em BA optou-se pelo bem estar dos habitantes. A cidade é dividida em quarteirões de tamanho regular, o que resulta em ruas perfeitamente paralelas que vem e vão e são interconectadas por transversais, dando opções e minimizando afunilamentos no trânsito (sem falar na malha metroviária, que conta com 103 estações e 7 linhas, além de 6 linhas de trens interurbanos que chegam à cidade em mais de uma estação terminal). Até para a ordenação dos endereços a regularidade dos quarteirões é totalmente adequada - cada quarteirão, com aproximadamente 110 metros de lado, compreende 100 números. Há grandes espaços abertos onde, no Brasil, a especulação imobiliária forçaria à sua transformação em condomínios ou edifícios comerciais. E mesmo onde isso aconteceu, como em Puerto Madero, houve a preocupação de transformar o novo bairro num "bairro-parque", convidativo e acessível, até mesmo para pessoas de baixa renda (existe mesmo uma favela na ilha, e os moradores desfrutam dos mesmos espaços públicos dos "novos ricos"). Sem falar na conservação da arquitetura do século XIX e início do século XX e no apreço pela arquitetura moderna, em contraste com os horríveis caixotes de concreto bege que se acotovelam colados uns nos outros nos bairros mais nobres do Rio. É uma cidade bonita de se olhar em todos os aspectos.

No dia seguinte tomamos o café da manhã do hotel (que dizem as avaliações ser meio pobrezinho, mas como eu sou mais pobrezinho ainda, estava de muito bom tamanho) e seguimos com destino ao Jardín Japones, em Palermo. A mais de 6 km dali. A pé de novo. Mas como íamos a pé, tracei algumas paradas bacanas: a Praça San Martin, a maravilhosa livraria El Ateneo (montada num grande teatro erguido há quase 100 anos), uma parada para um café e sanduba numa Havana (não podia faltar), supermercados (para comprar alfajores!), e o Jardim Botânico (muito modesto mesmo diante de alguns parques públicos locais). O Jardim Japonês é pago, mas é um lugar realmente belíssimo, onde transparece um cuidado minuciosíssimo com as plantas, na questão da jardinagem e do paisagismo. E pegamos ainda as folhagens coloridas do outono, então o cenário era de tirar o fôlego - fôlego que precisávamos para voltar tudo de novo.

Nesse dia, enquanto caminhávamos pela longa Avenida Santa Fé, reparamos nas fachadas dos prédios, dos mais antigos aos mais modernos, sempre elegantes e bem acabadas. Ao longo da avenida, os prédios são desses com comércio no térreo. No Rio, as portarias desses prédios são quase secretas, muitas vezes você precisa procurar bem uma portinha modesta entre uma loja e outra, levando a um corredor quase sempre escuro; em BA, as portarias dos mesmos prédios são lindíssimas, parecem portarias de hotel, convidativas, iluminadas, acarpetadas, com portas largas, e todos os detalhes em metal absolutamente bem conservados (muitos possuíam painéis de interfone de latão dourado, com ar de anos 30, perfeitamente polidos). Em Palermo, olhando para cima e vendo a beleza da vizinhança, com suas varandas floridas e fachadas lindamente bem acabadas, pensei que se tratava de uma região para famílias de alto poder aquisitivo, e me perguntei onde morava a classe média (o que seria o Méier de lá, por exemplo). Aí olhei para os carros estacionados na frente dos prédios: carros populares, Gols e Palios, com aquela batidinha na traseira. A classe média mora ali!

Falando em classe, me chamou a atenção não tanto a presença de moradores de rua, o que eu vi até em Londres, mas a sua idade: eram muitos idosos, abuelitas sentadas no frio pedindo esmolas ou comida de cortar o coração. Ao passo em que aqui se abandona a juventude, lá me pareceu que o sistema marginaliza os idosos. Me pareceu que há uma negligência do sistema previdenciário, que não é capaz de prover o mínimo para o idoso. Aqui, tenho uma avó que vive com um salário mínimo, mas graças aos serviços públicos da sua cidade, tem uma casa bonita, com quintal, e vive bem sozinha. Também chama a atenção a "cor": quase todos com ascendência indígena, provavelmente imigrantes do interior que não tiveram sorte na capital, dominada por descendentes de europeus, enredo muito familiar nas metrópoles brasileiras.

Na volta para o centro, com o cansaço batendo pra valer, eu considerei usar o metrô para voltar ao hotel, mas descobri que não se vende bilhetes na bilheteria :P Tudo funciona com cartão magnético, adquirido nas casas lotéricas, e onde eu acharia uma lotérica em BA num sábado à noitinha? Mas tudo coopera para o bem, porque andando mais um pouco, esbarramos numa churrascaria, a Parrilla Aires Criollo, onde enfim comi o bife de chorizo com papas fritas. Minha esposa ficou com uma milanesa de frango (outra especialidade da cidade, um filé de sobrecoxa batido até ficar do tamanho do prato, mas ainda assim suculento e com um tempero que eu não consigo reproduzir em casa). O meu pedido foi, na verdade, "meio bife", o que significava um filé gordo de 300 g. Isso e a porção de batatas que dividimos foi mais que o suficiente para o jantar. Batemos o prego no hotel e a noite acabou ali. Bife de chorizo é melhor que picanha, prontofalei.

Na manhã seguinte tomamos café e pegamos o Uber para o aeroporto. Lá, finalmente, comemos uma empanada. É vital para quem vai a BA comer um choripán de rua, um bife de chorizo com papa frita, uma empanada, uma medialuna - a tradução castelhana para "croissant" - além de doce de leite e alfajor, que compramos em quantidade no supermercado do mais barato que tinha. Só faltou a pizza, já que as pizzas artesanais também são muito cotadas (mas talvez não tão divulgadas aqui, porque em todo lugar se come pizza no Brasil, e todo mundo acha que a pizza local é a melhor do mundo, inclusive a pizza de bosta do carioca). A empanada do aeroporto provavelmente não era a melhor da cidade, mas como é algo que minha mãe faz em casa em nível de excelência (com uma receita chilena, é verdade), achei essa amostra respeitável.

Além dos lugares que eu fui, há muitos museus com entrada franca na cidade, e de fato, grande parte das obras dos maiores expoentes da arte da América Latina, incluindo o Brasil, faziam parte de acervos de colecionadores argentinos, e hoje estão nos museus na cidade. Para quem curte uma cultura alternativa, tem a Recoleta, que eu apenas tangenciei, que é uma espécie de "Lapa" plana e colorida. Há muito mais o que se ver, saindo do raio do "caminhável" a partir do Microcentro, como Boca, Tigre, San Isidro, e mesmo para quem quer expandir mais, é possível pegar um barco até Montevideo ou Punta del Este. Fazendo uma avaliação de preços, os custos de alimentação em BA são bem parecidos com o Rio de Janeiro, convertendo-se os valores em reais. Os únicos ítens que são obviamente mais baratos, por causa da oferta farta, são os alfajores, os chás, as geléias e laticínios, que é o que vale a pena trazer na mala. Como foi o que eu fiz, esses 825 reais (cuja metade foi embora nos ingressos para o Cirque du Soleil!) acabaram suficientes para um casal com disposição e sem grandes pretensões passar bem dois dias e meio na cidade aproveitando o bom e o barato e voltando para casa com a mala cheia de guloseimas portenhas - cansados mas felizes.

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