segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Jornada de Trabalho

Meu pitaco sobre o lance de permitir ao empregador acertar com o empregado a distribuição da sua jornada regular de trabalho em turnos de 12 horas diárias. Para isso, vamos supor que a chefia acertou comigo que meus turnos passariam a 12 horas diárias - afinal, eu sou bolsista, e o único direito trabalhista que eu tenho é o de pedir para cancelar a minha bolsa.

"A jornada semanal vai continuar a mesma, no final não muda nada."

Eu trabalho 40 horas semanais, 8/5. Meu trabalho é 100% intelectual, ou seja, fico sentado na frente de um computador resolvendo diversos tipos de problemas. Na verdade, divido meu trabalho em três ou quatro funções principais.

A primeira, de revisão e qualidade de dados, consiste de percorrer com os olhos planilhas de dados com até 11 mil linhas em busca dos erros mais grosseiros aos mais sutis, pelo menos 16 vezes (são as categorias de dados que precisam de revisão), ou seja, meus olhos precisam passar por até 176 mil dados que variam entre nomes de pessoas, localidades, coordenadas geográficas, datas, nomes científicos, e uma variedade de informações alfanuméricas que, pela natureza da origem, não são padronizados. Uma vez encontrado um erro, preciso recorrer à imagem da planta de onde o dado foi capturado para ver o que é o correto. Frequentemente esse dado é uma assinatura ou rubrica que demanda a consulta a bases de dados online, cruzando informações que normalmente são esparsas, torcendo para que alguém tenha capturado aquilo algum dia - e interpretado a caligrafia corretamente. Aqui é a visão e a concentração que são exigidas.

Além disso, eu percorro uma equipe de 14 pessoas, estabelecendo com eles as diretrizes de trabalho, orientando dúvidas específicas, anotando problemas e sugestões a serem discutidas com a chefia ou o TI, e mantendo a moral elevada, e assessorando em situações diversas. É onde a memória e a agilidade e precisão em consultas precisam ser eficientes.

Um terceiro aspecto é que eu alimento nossa base de dados de nomes científicos. Cada vez que uma espécie precisa ser capturada, mas ela não está na base, é minha função incluí-la. Mas por questão de curadoria, temos restrições quanto a táxons ilegítimos e inválidos, então a cada nome a ser adicionado, eu preciso fazer uma pequena revisão taxonômica relâmpago, que inclui, frequentemente, a consulta às obras princeps (que, se eu der azar, vem escrito em línguas que não o latim, como sueco, holandês, ou dinamarquês). As bases de dados que eu consulto nem sempre indicam o status taxonômico de um nome, então a necessidade desse tipo de pesquisa surge o tempo todo. Para se ter ideia, pessoas fazem teses de doutorado com esse tipo de trabalho, e revistas normalmente aceitam revisões de uma espécie, que eu preciso revolver em minutos para dar andamento ao trabalho. Em mais de uma vez, já precisei adicionar mais de 200 nomes novos na base em um dia (fazendo minha contagem, só com o meu login atual, ultrapassei os 11 mil nomes de famílias, gêneros, espécies e táxons infraespecíficos, sem contar os que eu pesquisei e atestei a invalidade do nome, que não estava indicado nas fontes de consulta, e não adicionei). Essa parte exige o que meu raciocínio pode fazer de melhor.

Uma quarta parte inclui lidar com pessoas fora da equipe - o pessoal do TI, a chefia, parceiros do Brasil e do exterior (enviando ou recebendo dados, ou tirando dúvidas), a coordenação com outros pontos da nossa "cadeia produtiva" para evitar gargalos, e uma ou outra demanda dos pesquisadores da casa. Além de atualizar e monitorar a página do facebook do projeto.

Isso em 8 horas diárias, 5 dias da semana. 40 horas semanais.

"Se fizer turnos de 12 horas, vai trabalhar só 3 dias e mais 4 horas num outro, e vai folgar três mais um dia quase inteiro. Aí eu vi vantagem."

Meu trabalho exige 100% da minha capacidade mental em 100% do tempo. Não só o desempenho da minha função depende disso - porque se eu aliviar, o volume de trabalho por fazer se acumula demais, e para se ter ideia, um problema de TI impediu que eu revisasse planilhas por um mês, e eu só consegui colocar esse trabalho em dia 4 meses depois - como toda a produção da minha equipe depende disso. Chegamos a informatizar coletivamente 1400 espécimes por dia (sem que a equipe toda esteja trabalhando, pois como eles cumprem 20 horas, seus horários são intercalados). É um pequeno herbário por semana, e tudo isso precisa de orientação, assessoramento e revisão antes de ser colocado online.

Entenda que é um trabalho que me dá muito prazer, porque toda pequena dúvida ou problema solucionados me dão uma sensação de um pequeno orgasmo mental, a impressão de que o cérebro cresceu mais um pouco. Poucas vezes eu me senti tão foda como quando eu descobri onde fica o tal "Sertão d'Amaroleité", uma localidade em que naturalistas europeus coletaram no século XIX e que a literatura botânica nunca conseguiu precisar. A relação entre geografia e sua contextualização histórica (porque lidamos com 250 anos de coletas de plantas no Brasil, e as localidades apontadas mudam de nome, de estado, de país, e eu tenho que saber e informar onde ela fica exatamente, hoje. Cada vez que eu descubro isso, é uma felicidade. Além disso, a palpabilidade do que nós produzimos, e a dimensão da importância de um herbário virtual online de plantas brasileiras com quase 2 milhões de exemplares mantém a minha motivação em alta.

Mas cansa. Como qualquer atividade praticada continuamente com esforço, causa fadiga. Chego à 8 ao trabalho, mas só atinjo minha velocidade de cruzeiro às 9:00. Tenho intervalos de 30 minutos de manhã e tarde, e uma hora de almoço (não contabilizada, lógico, mas que às vezes eu uso para adiantar algum serviço que ficou para trás na lista de prioridades), que servem para descansar os pulsos e os olhos. Lá pelas 16:30 eu já estou me arrastando. A planilha embaralha na vista, já não consigo encontrar informações porque não consigo mais formular as perguntas (porque na ciência, se você não souber formular a pergunta, o que você quer saber pode estar se esfregando na sua cara, e você não vê). Ou seja, tem uma janela aí de pouco mais de 6 horas em que eu consigo imprimir meu máximo. E falo pela equipe, tanto pelo que eles me falam, como pelo que eu vejo da produção deles enquanto eu faço a revisão dos dados, que eles sofrem do mesmo cansaço quando optam por cumprir 8 horas num dia.

Na hipótese de fazer isso por 12 horas, ao invés de produzir mais, eu continuaria tendo um pico de 6 horas de qualidade total, e ao invés de 1 hora e meia ou 2 de intensidade reduzida - o que, projetando para a semana, significa 30-35 horas de produção máxima e 5-10 piscando os olhos para recuperar a sua umidade natural - isso seria agora metade do meu tempo de trabalho. A minha produtividade cairia quase pela metade ao final da semana.

Isso porque é um trabalho mental. Imagine virar cimento, embalar, carregar e descarregar. Quem trabalha mesmo - não necessariamente quem tem emprego e bate cartão, mas quem emprega seu esforço físico e mental no trabalho da hora que chega até a hora que sai - sabe que não é possível manter o ritmo por muito mais tempo. E muitos já devem ter intuído que 8 horas já é demais - em países mais civilizados, a direção é pela redução da carga horária semanal para 30 ou 36 horas, porque já se notou que a eficiência do trabalhador está relacionado ao tempo em que ele consegue imprimir seu esforço no trabalho de maneira eficaz e quanto tempo ele consegue descansar ou se dedicar a outras atividades entre um dia e outro, e que no regime de 40-48 horas paga-se por um tempo basicamente ocioso em que se produz pouco e impede o trabalhador de fazer outra coisa, inclusive descansar.

Eu sei que já tem gente que trabalha 12 horas. Mas pagam-se adicionais, tem-se folgas obrigatórias. Existe todo um conjunto de leis que protegem o trabalhador

"Mas os turnos de 12 horas não serão impostos por lei. Ela apenas permitirá que patrão e empregado acertem esse regime de comum acordo."

Aí eu começo a suspeitar da ingenuidade ou da má intenção do argumento. Patrão e empregado negociam até o ponto em que o empregado seja indispensável na sua função. Se houver duas pessoas capazes de realizar um serviço, o que não aceita trabalhar nos termos do patrão corre o risco de perder o cargo para outro que aceite. O patrão tem o dinheiro, e o único capital de que o trabalhador dispõe para negociar em troca é sua força de trabalho - e como existem mais trabalhadores do que patrões, e eles detêm o dinheiro, a relação é absolutamente desigual. Vai ter muita gente aceitando isso, porque senão vai ter outro que aceite, e ele será descartado. Na minha situação, por exemplo, em que a relação trabalhista já é frágil - sou bolsista, e já não existe praticamente nada me amparando - em precisaria ser o melhor que existe na minha função para convencer minha chefe de manter a jornada em 8 horas, que já é muito.

Portanto, possibilitar a normalização do aumento da carga horária diária para 12 horas não vai gerar emprego nenhum porque não vai abrir vaga, a menos que aumentem a duração das semanas (nenhuma vaga que não seria gerada comprimindo-se a carga diária para 6 horas, por exemplo, possibilitando o funcionamento das empresas em até 3 turnos sem adicional noturno), como vai expor o empregado às exigências da empresa (a tão sonhada negociação), e vai ocasionar, muito possivelmente, uma queda geral de produtividade em vários pontos das escalas produtivas. Quem propõe e defende esse tipo de coisa:

1- É empregador e não tem contato direto com seus funcionários;
2- Nunca trabalhou na vida;
3- Trabalha na boa, fazendo um ou outro serviço pontual e ficando boa parte do dia de bobeira - acha que "capinar um lote" é trabalho duro, mas nunca capinou um lote.

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